05/01/2016 by marioregueira

Desejo

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Recortada da original do usuário de Flickr Farther Along – CC BY 2.0

Não saberia dizer quando foi. Provávelmente a finais dos noventa. Bob Dylan não significava nada para mim. Um tipo com um par de canções tão icónicas como vazias. A pessoa da que os Guns N’ Roses fizeram uma versão na minha primeira adolescência. Um velho que tocara havia pouco diante do papa dos católicos, esvaindo o escasso halo rebelde que podia conservar. Nos tempos nos que o a blogosfera galega fervia e abundavam os dylanianos cheguei a criar uma pequena polémica dizendo que o Zimmerman não fizera grande coisa depois dos setenta. Os fanáticos seguirão protestando, mas se os oitenta de Dylan são para esquecer, os noventa não foram muito melhores. Boa prova foi que nesse momento, entre concertos apagados e discos medíocres, pude deixá-lo passar sem mais. Algo disso discutira com o meu pai naqueles dias. O conflito geracional, e eu sorrindo ceticamente cada vez que dizia que era um dos grandes, que havia bem mais do que a imagem distorcida que ofereciam dele os média. Segundo meu pai havia um disco que não escutara e que poderia resumi-lo tudo. Um disco que não tínhamos e que nunca tivéramos, mas que ele lembrava da sua mocidade. Não sei com quem falou. Naquela época de discos digitais e na que começava a aparecer um formato estranho chamado mp3, meu pai moveu céu com terra, visitou antigos camaradas e falou com velhos conhecidos do trabalho. Um dia de festa na velha casa dos meus avôs pediu-me que saísse com ele. Estacionara o carro com as portas abertas ao pé do velho espigueiro escorado. Alguém lhe deixara uma cassette e um dos poucos sítios que tínhamos para escutá-la era na velha rádio daquele velho carro. Era uma fita original, mais velha que eu e rotulada (nunca o esquecerei) em inglês e espanhol. Desire – Deseo. Com canções com títulos como Huracán, Una taza más de café ou Bahía del Diamante Negro. Na capa, um Dylan estranhamente novo sorria disfarçado de cowboy.

Tenho lido alguma vez crónicas de dylanismo apaixonado que incidem na mesma ideia. Não voltas ser a mesma pessoa depois de escutar pela primeira vez Hurricane, oito minutos e meio nos que parece que uma guerra se desata e te leva por diante. Meu pai contava-me a história que o meu inglês não dava para perceber. Furacão Carter, o racismo nos Estados Unidos, um crime que não cometera, a épica dum boxeador entre grades. A vergonha de viver numa terra onde a justiça é um jogo. E Dylan iniciando um movimento que conseguia reabrir o caso e pô-lo em liberdade. Num momento no que eu já me formulava abandonar direito pela literatura e as tensões na minha casa começavam, meu pai dava un tiro no pé com um conselho que nunca se atreveria a dar-me explicitamente. As vezes não chegam os advogados para reparar uma injustiça. Às vezes faz falta uma canção.

"Dylan and The Band" by Hugh Shirley Candyside - Flickr: Dylan and The Band. Licensed under CC BY-SA 2.0 via Wikimedia Commons

“Dylan and The Band” by Hugh Shirley Candyside – Flickr. CC BY-SA 2.0 via Wikimedia Commons.

Naquele serão no que o sol ia caindo pouco a pouco sobre o horizonte de Valdovinho, escutamos o disco inteiro. Rimos com o espanhol macarrónico de Romance in Durango, abrimos os olhos ante uma canção que se intitulava Mozambique, e estremecemos-nos com Oh Sister ou One More Cup of Coffee. Mais uma taça de café para eu continuar vale abaixo. A canção final, Sara, voltava soar como um fenómeno natural, algo mais calmo que o furacão do início. Além do icónica e política que resultava Hurricane, o tom geral do disco falava sobretudo da paixão. Como dizem as velhas crónicas dylanianas, quando a fita acabou, eu era outra pessoa. E porém, todo aquilo era só uma parte de um puzzle que completaria nos anos seguintes.

Muita gente sustém que Desire não é mais que uma segunda parte de Blood on the Tracks, um disco anterior que eu ainda tardaria um tempo em descobrir. Poderia declarar que ambos supõem a cúspide do talento de Dylan, numa época especialmente produtiva que nunca jamais se repetiu. Ambos contam a história de uma rutura e de um regresso, mensagens muitas vezes contagiadas de declarações políticas. Vivi com elas numa rua da zona velha. À noite havia música nos cafés e a revolução estava no ar. Nunca tive nenhum desses discos em formatos que quisesse conservar. Anos depois, meu pai presenteava-me uma gravação ao vivo da mesma época gloriosa, com as mesmas canções. Ninguém o sabia, nem eu no começo, mas achegava-me a um momento vital de rutura e reencontro, e durante meses as canções de Dylan acoplavam como feitas de propósito para a minha própria vida e pude aprendê-las de vez entre despedidas e regressos, traduzindo-as com pronomes impossíveis. Morremos e renascemos, misteriosamente a salvo, e trás voltar à vida encontramos as mesmas pessoas no quinto dia de Maio. Ainda que nós sejamos outros.

Não saberia dizer quanto de mim continua a cantar essas letras nem quanto delas ficaram para sempre entre as minhas. (Se o vês, diz-lhe olá, agora deve estar em Tânger. Estará pensando que o esqueci. Não lhe digas que não é certo). Furacão Carter morreu o ano passado, Dylan nunca voltou brilhar com esse lampejo cegante, muito menos depois de tocar para o papa dos católicos ou fazer retirar todas as suas canções do youtube, o carro de portas abertas contemporâneo. E nunca voltou falar de revolução. Não podes falar dessas coisas depois de empenhar a tua alma. E porém, apesar disso, como a chama do amor que palpita e esmorece antes de regressar, erguemos as nossas taças quarenta anos depois da cimeira dylaniana e revemos todas e cada uma das marcas que o desejo deixou nos nossos corpos. De todas as coisas que fizemos sempre haverá uma da que não nos arrependeremos. E as que não fixemos foi apenas por uma simples torção do destino.

28/06/2015 by marioregueira

Jogos de imitações

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No meu livro O Silencio, no meio de todos os poemas de guerra, há um dedicado a Alan Turing, “a pessoa que ganhou a II Guerra Mundial”, como me refiro a ele quando tenho que recitá-lo. A cara de incredulidade do público vai-se atenuando conforme passam os anos. Turing é um desses heróis recentes. Ainda que a parte heroica do seu trabalho se remonte aos anos quarenta, tardamos muito em conhecê-lo, e tardou bem mais em chegar ao grande público. Durante décadas, Turing era a pessoa que dera nome ao teste de Turing, um matemático que estudara as possibilidades da inteligência artificial e que morrera em estranhas circunstâncias na década dos cinquenta. Pouca gente sabia a dimensão bélica do seu trabalho nem o facto de que a mesma sociedade à que salvara da destruição o condenara à castração química pelo feito de ser homossexual. A sua história, mesmo depois de ser desclassificada, permaneceu no limbo dos círculos de aficionados.

O acontecido com Turing é parte do acontecido com outras figuras e faz parte da ideologia social imperante. Não só com as pessoas suspeitas de fugir da heterossexualidade normativa, também com as mulheres. As pessoas de determinada idade abríamos os olhos ante a possibilidade de que a filha de Lord Byron, Ada Lovelace, fosse considerada a primeira programadora de computadoras da história ou que a actriz Hedy Lamarr fosse a inventora, também durante a guerra, da tecnologia WiFi. Também assombrava saber que a rádio não fora inventada pelo Marconi que nos disseram no colégio, senão por um tal Nikola Tesla, uma personagem caracterizada também pela sua ambiguidade sexual.

Penso que é a sociedade das comunicações dos últimos vinte anos a que propiciou que muitas dessas pessoas possam ser recuperadas. Recuperadas para o grande público, naturalmente. Figuras como Nikola Tesla faziam parte da cultura popular, apareceram na literatura e no cinema de ficção científica e em géneros considerados subalternos como a banda desenhada (entre outras coisas, como estrafalário herói Marvel). Algo semelhante aconteceu também com Turing, cuja presença como personagem de ficção é cada vez mais frequente e joga um papel importante em obras como Cryptonomicon de Neal Stephenson, novamente num género subalterno onde não se oculta a importância da opção sexual da personagem.

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As coisas mudam quando é grande indústria a que redescobre e trata de tirar vantagem da popularidade crescente destas figuras às que ignorou durante anos. O ano passado estreava-se The Imitation Game, o primeiro filme dedicado à proeza que supôs o deciframento das máquinas Enigma. O filme resulta interessante e faz alguma justiça a figuras que novamente poderiam ser condenadas ao esquecimento, como o corpo de mulheres que participaram também no que foi uma façanha matemática de guerra. O mais interessante porém era ver como a indústria cinematográfica digeria uma figura como a de Alan Turing e a questão da sua sexualidade. Sempre há uma distorção entre os biografados e as biografias. Lawrence de Arábia nunca foi tão bonito e Mozart nunca foi o génio histriónico de Amadeus (nem Salieri tratou nunca de assassiná-lo). Ainda aceitando isto, não deixa de ser chocante que o Turing do filme seja uma espécie de reencarnação de Sheldon Cooper, uma figura rígida, insegura e atada a essa espécie de superioridade intelectual despótica que só manifestam os medíocres. Muitas pessoas perguntavam se Turing, ao igual que o protagonista de The Big Bang Theory padecia síndrome de Asperger.

A distorção no filme é inseparável, à minha forma de ver, da falta de referentes para representar uma personagem homossexual que não passem pelo histrionismo ou apoucamento. O Turing real era tímido e arrastava, desde a infância, problemas de socialização. Mas também era um excelente colega, com sentido do humor e uma atitude ante a vida que não representava fissuras no modelo de masculinidade imperante naquela época. Seguramente também não as representaria no modelo atual, ao menos no que maneja a indústria cinematográfica. De alguma forma havia que destacar a homossexualidade de Turing no filme, e apresentar uma cena de sexo (como acontece no romance de Stephenson), não era uma opção. De facto, há quem sustém que foi a sua atitude desafiante ante as forças da ordem a que provocou o processo por indecência contra ele. Nada que ver com o histérico que interpreta Benedict Cumberbatch. Por outra parte, também haveria muito que dizer ao respeito da figura de Keira Knightley, e o seu papel como mulher excepcional no meio de um grupo de homens, um rol que invisibiliza as muitas outras mulheres que participaram ao mesmo nível no decifrado e que sofreram um esquecimento similar ao que sofreu Turing.

Penso seriamente que algum dia se analisara The Imitation Game dentro desta chave, e que não será a última dificuldade da indústria à hora de representar os heróis e heroínas populares do século XXI, esses que estavam ocultos até que uma comunidade interconectada os revelou. Pela minha parte penso que seguirei preferindo o Turing abertamente gay de Stephenson, a Ada Lovelace de Cris Pavón (seduzida por uma vampira lésbica), e até o Nikola Tesla ahistórico interpretado por David Bowie em The Prestige. Os seus erros são outros, mas ao menos não têm nada que ver com os tópicos e limitações que hoje imperam.

Twain e Tesla

Mark Twain no laboratório da Tesla, jogafndo a ser super-herói.

17/05/2015 by marioregueira

Requiem Galego 2015

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Há um conto do velho Borges do ano 49 intitulado “Deutsches Requiem”. Nele, um ex-combatente alemão, enumera, pouco antes da sua execução, os motivos que o levaram a apoiar o nazismo na Alemanha. Numa interpretação mística que não foi alheia a todo o fenômeno ideológico da época, o protagonista conclui que a derrota da Alemanha é em realidade uma vitória sobre o mundo. Alemanha apareceu para impor a espada e a barbárie e fazer recuar os valores cristãos. Mesmo derrotada, obrigou ao resto de Ocidente a empreender uma luta épica e crepuscular, dando início assim a uma nova era. O seu sacrifício é um preço pequeno pelo objectivo, que não seria outro que salvar a civilização da decadência.

Se a derrota da Alemanha dava para fazer cábalas sobre uma vitória oculta, bem mais se poderia dizer do franquismo, nunca abaixado pelo poder da espada. A vitória do franquismo foi saber mimetizar-se, acompanhar como um fantasma perene o espírito da Transición, voltar ciclicamente desde as urnas ou as associações ultra católicas, seguir ecoando desde os tétricos antros onde se seguiu e se segue a praticar a tortura (300 casos dos que a O.N.U. diz que o Estado espanhol se nega a informar).

Não foi algo muito diferente do que o regime fez em vida. Os rapazolas que vitoriavam a aviação germana ou a italiana preconizavam que Franco sairia de Hendaia disposto a atirá-los contra o resto do mundo, se calhar dispostos a uma luta épica e crepuscular que habitou para sempre nos sonhos do falangismo romântico. Mas Franco soube ir vestindo os diferentes fatos de camaleão, e em pouco mais de uma década passava de possível e entusiasta aliado do nazismo a aliado de facto dos Estados Unidos contra a ameaça comunista. E de aí a entrar na UNESCO, abrir o país ao turismo, e normalizar entre aspas a sua situação com a comunidade internacional, sem por isso deixar de reprimir e assassinar à população. Alguns biógrafos não perdem a oportunidade de pôr o toque xenófobo e ressaltar que Franco era galego e que por isso ninguém sabia se subia ou se baixava.

Vendo o documentário de Gonzalo Veloso Contextualizando a Filgueira Valverde dá nas vistas como alguns dos convidados destacam algo muito parecido no polígrafo pontevedrés. Filgueira esteve sempre onde “tinha que estar”: foi independentista quando correspondia, nacionalista quando correspondia, franquista quando correspondia, aperturista depois e finalmente democrata de toda a vida ou, se nos guiamos por recentes declarações de Alonso Montero, mesmo agente oculto do galeguismo entregado a uma (muito paciente e demorada) erosão do franquismo.

Filgueira Valverde poderia passar à história das nossas letras como um erudito que traiu uma causa. Ninguém disputa o de erudito, mas parece haver muitas pessoas e instituições dispostas a passar por alto o segundo. A primeira, a Real Academia Galega, para quem não pesaram o suficiente todas as opiniões em contra. Em realidade, não surpreende demasiado, a Real Academia Galega e Filgueira Valverde são produtos de um processo similar. O primeiro desfez-se do fardo da sua ideologia quando foi um obstáculo para a sua sobrevivência. A Real Academia Galega também se desfez de parte do seu passado para ser, durante os primeiros anos da posguerra, uma resignada instituição com um cheirinho folclórico. Teve que renunciar ao galego nas suas manifestações públicas e aceitou, como académico de honra, ao grande genocida da sua própria cultura, o general Francisco Franco, se calhar com o mesmo gesto com o que Filgueira o recebia nas suas visitas a Pontevedra. Dizia Francisco Castro estes dias que não havia que ter medo de dizer que Filgueira fora galeguista e franquista. É óbvio que o significado de galeguismo não é o mesmo para todo mundo, mas também é evidente que, na interpretação de Francisco Castro, também a Academia deveu ser galeguista e franquista, ao menos até 2009. Até esse ano (presidência de Méndez Ferrín) ninguém se lembrou de retirar ao monstro ferrolão um título que ainda mantêm outros galegos de méritos bem discutíveis na sua defesa da língua. Se calhar o próprio Francisco Franco, de quem se rumoreja que falava em galego na intimidade do Azor com o fotógrafo Manuel Ferrol e que reconhecia “gostar” do nosso hino, fosse também um pouco galeguista além de franquista. Quem sabe o que depara o futuro da Academia, ao melhor ainda há espaço para assombros e podemos ver Dias das Letras que nos deixem atónitos.

Filgueira Valverde. Um faro na construção da Galiza. (culturagalega.gal)

Porém, o problema da instituição não se limita só a esse peso do franquismo. O camaleão tem fatos para todo, e os seus próprios movimentos de “reconquista” estiveram marcados por dinâmicas peculiares. Carvalho Calero e Francisco Fernández del Riego, avançada útil do grupo de Galaxia, vão recorrer de seguida à constituição de uma “família”, um grupo de pressão próprio que vá fazendo “entrismo” paulatino para acabar por controlar a Academia. Eram as estratégias da época, mas elas também representam o triunfo do franquismo e as suas políticas de famílias e correligionários, tendentes a um sectarismo que entrou na Academia de forma bem mais estável que o que marcam os ritmos históricos. O franquismo, como o nazismo do conto de Borges, triunfou. Obrigou a toda a sociedade a mirar-se de soslaio, a ver inimigos em cada esquina, a vestir fatos para cada ocasião, a procurar contactos e influências para poder conseguir as coisas às que deveram aceder por mérito ou direito. Quem se mexe não aparece na foto, se calhar por isso, numa Academia com nomes pouco suspeitos de conivência com o que representa Filgueira Valverde, (quase) ninguém se mexeu.

Não há que ser um erudito como o homenageado para saber, a estas alturas do século XXI, que existiu uma política de consentimento e colaboração de determinados sectores do franquismo com o galeguismo resistente. A própria Academia sobreviveu a ditadura porque a ditadura nunca a considerou um perigo, muitos dos seus membros sobreviveram porque tiveram padrinhos bem relacionados com o regime, o próprio Filgueira Valverde entre eles. A Academia desculpa o medo de Filgueira porque com ele acredita que queda desculpado também o seu próprio medo. Essas acções vão muito além dos poemas que Alonso Montero tanto gostou de expurgar, são menos contigentes e menos literárias, mas no nome delas criaram-se dinâmicas que nos acompanham até agora, como o espectro que ronda o espírito da chamada “transição política”. No nome de muitas dessas dinâmicas perdemos o país e estamos perdendo a língua. Uma amostra da madureza das nossas instituições culturais seria apostar por uma óptica ampla, abrir o debate, promover uma análise que enfoque a questão sem ambages e sem jogar a criar imagens patéticas, como a do homem que chora a sua covardia quando se lembra de que não foi falar no julgamento de Bóveda e a quem nós temos que celebrar este dezassete de Maio. Sem criar santinhos aos que, por um ano, levar bíblias acabadas de imprimir e velas, e dos que, como se faz nos enterros, está proibido falar mal em voz alta.

Se calhar a própria concepção da festa e as suas regras absurdas convide a isso. O carácter do Dia das Letras, a sua coincidência no espaço-tempo com familiares e testemunhas, foi útil baixo a ditadura, mas também o arrastamos até um tempo no já que não resulta uma ferramenta, mas um lastro. O que se avança em conhecimento de um autor perde-se no elogio imposto, a objectividade não tem cabida quando a missão é criar uma afirmação entusiasta e um ambiente de celebração, e a crítica é silenciada desde as instâncias mais altas. Se calhar sejam horas, mais do que nunca, de reformular como é que se vai continuar a  fazer as coisas, abrir as janelas e impedir que esses herdeiros de outro tempo, com os seus fatos camaleónicos, sigam reproduzindo-se sobre um palco do século passado. O mesmo no que não se contesta a ausência de figuras femininas por precaução e respeito. O mesmo onde o debate normativo não tem cabida nem baixo a figura de um antigo membro, mas sim cabem genocidas em postos de honra. O mesmo que se justifica orgulhoso no seu próprio nepotismo. O mesmo no que trair camaradas de militância é “o que corresponde” porque estamos familiarizados até a náusea com a linguagem de um medo que tem quase um século de história.

Joan Fuster dizia que o mais repulsivo dos povos dominadores é que impõem aos seus dominados o espectáculo da sua mediocridade sem remédio. No caso do franquismo, e no caso concreto do nosso malfadado país, haveria que somar-lhe o contágio dessa mesma mediocridade, o triunfo do mimetismo e da conveniência, a vitória quotidiana dos generais mortos, tantos anos depois, o réquiem inacabável do povo galego.

Filgueira Filoloxía

Cartaces da Xunta de Galicia contextualizados espontaneamente.

29/04/2015 by marioregueira

A tumba de Leiras

Leiras

Monumento em Mondonhedo

Participei o ano passado na primeira edição de “Mondoñedo é poesia”, uma aposta por encher de versos as ruas da velha capital de província, esse nordeste fértil que tantas e tantas vozes tem dado à literatura galega e tantas outras tem acolhido entre as suas pedras. Pensávamo-lo trás passear pelo cemitério velho: se a máxima de Castelao fosse verdadeira, e em vez de mortos fossem sementes as que metêssemos na terra, Mondonhedo seria um jardim. Não é singelo em nenhuma cidade da Galiza ver tantos e tantos nomes nas lápides históricas. Porém, o mais emocionante sem dúvida foi durante a parte do recital que transcorreu ao pé da tumba de Leiras (bem enfeitada com as rosas vermelhas que ele pediu sobre ela).

Alguém da organização me explicava por que a tumba de Leiras está onde está, no que parece a porta principal do cemitério velho, um pouco antes das escadas que dão acesso ao recinto em si, num apartado que depois. se reservou para as crianças. “Isto originalmente era extramuros do cemitério original, Leiras foi enterrado fora do sagrado”. Era evidente, Leiras Pulpeiro, maçom e furibundo anticlerical não obteve o direito a entrar no recinto controlado pela igreja católica

“Contam que o dia do seu enterro, um grupo de lavradores saltou o muro de cemitério e deitou terra com as pás para fora. Assim, mesmo desterrado, Leiras poderia jazer em terra consagrada”. A imagem era tão poética que não pude evitar representá-la mentalmente, um grupo de jovens desafiando o frio daquele Inverno de 1912, e desafiando também algo mais, a mesma estrutura religiosa que abafara ao vate de Mondonhedo e que conservava o seu poder praticamente intacto naquela altura do século XX. Muito deveu significar para o povo uma figura como a de Leiras Pulpeiro, tanto que, numa última homenagem decidiram arriscar-se a dar-lhe ao defunto algo que o próprio defunto, sem dúvida, não apreciaria tanto coma eles: a terra sagrada que não se lhe deve negar a ninguém. Quem disse que o povo não reconhece os seus poetas?

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Leiras e família

Na minha formação sempre me representaram a Leiras como um paisagista, uma denominação que ainda conservo como um tique. A escola paisagista mindoniense, iniciada por Leiras Pulpeiro e Noriega Varela. Tardei alguns anos em saber que Leiras e Noriega eram figuras politicamente opostas, e mais ainda em saber que Leiras Pulpeiro fora um autêntico rebelde durante o Mondonhedo do século XIX, médico dos pobres, capaz de fazer fronte ao poder eclesiástico, mas também de participar na criação de um dos primeiros projetos de “Estado galego” e de ser um dos poucos (se não o único) em contestar os versos eternamente censurados de Rosalia de Castro com estes outros:

E así son sempre pra España/ os patrucios desta terra/ esquencida, que española/ nunca chamarse debera.

E assim são sempre para Espanha/ os patriarcas desta terra/ esquecida, que espanhola/ nunca chamar-se devera.

Seguramente nunca chegaria a apreciar deste modo a figura de Leiras se não fosse pelas colegas de “Mondoñedo é poesia” e por aquela jornada, rica em histórias e em momentos significativos, rodeados sempre das paisagens amadas por Leiras Pulpeiro, Noriega Varela, Álvaro Cunqueiro e tantas outras figuras de primeira fila que decidiram nascer na velha Mondonhedo. E ainda que este ano não possa acompanhá-los, estou seguro de que o programa do próximo 1 de Maio (durante as Festas das Quendas) voltará encher as ruas da antiga capital com o melhor da nossa cultura. Porque, ao invés do que disse Castelao, nunca enterramos sementes junto com os mortos queridos, mas há jardineiros audazes que podem fazer brotar um novo jardim com as suas simples palavras. Mesmo reproduzindo num caloroso dia de Maio a poética valentia de um grupo de lavradores no Inverno de 1912.

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A tumba de Leiras Pulpeiro no Cemitério Velho

12/04/2015 by marioregueira

Ano Lois Pereiro

Casa da Cultura

Voltamos a Monforte no começo de outra Primavera para participar nos actos que dão o nome de Lois Pereiro à Casa da Cultura e à Biblioteca Municipal. Num país tão dado aos esquecimentos como este não deixa de ser um triunfo colectivo que uma figura como Lois perpetue a sua memória na cabeceira dos centros culturais da sua cidade. “Muito melhor que um passeio marítimo ou um barco de guerra” dizia Xosé Manuel Pereiro no acto. E por suposto muito melhor o nome de um poeta que o de um título de nobreza (Conde de Lemos, hoje em mãos da Casa de Alba), tal e como algum grupo político propôs.

Foi inevitável lembrar ontem o 2011, o ano no que o fenômeno Lois conseguiu revolucionar uma data em risco permanente de ancilosamento como é o Dia das Letras Galegas. Apesar de que certos sectores sociais consideraram polémico que um autor achegado à marginalidade urbana como Lois Pereiro protagonizasse a grande data da cultura galega, o verdadeiro é que hoje, quatro anos depois, o balanço que ficou não pode ser mais positivo. Pela primeira vez em décadas as Letras Galegas implicaram na sua festa a toda a sociedade. Das casas okupas às salas da Real Academia Galega, e dos actos oficiais aos bares e pubs. Não foi só casualidade nem foi o sequestro académico de um poeta popular. A figura de Lois foi sempre a de um autor com um noção culta da criação literária que porém (e a diferença da maioria dos seus colegas de geração) nunca deixou de perceber que a cultura popular também era cultura.

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Não sabemos que pode dar de sim o “Ano Lois Pereiro” com o que a câmara municipal de Monforte completou a sua homenagem ao autor, porém, seguramente não serei o único em vê-lo como uma oportunidade para remontar um ano cultural que, até há umas semanas, parecia que seria tétrico e terrível. Trás uns anos de recuperação inegável do contacto com a população, a Real Academia Galega escolhia para o 2015 a figura de Filgueira Valverde, um autor que colaborou activamente com o franquismo, e portanto, também com o genocídio cultural que este efectuou sobre a língua e o povo galegos. Pela primeira vez, e apesar de não ser a primeira figura polémica que passava pelo 17 de Maio, várias associações culturais negaram-se a comemorar um autor escolhido para o Dia das Letras. Porém o que mais abundou e o que mais preocupa é o silêncio, que faz pressentir um 17 de Maio monopolizado pela classe política e por aqueles grupos culturais com um interesse ideológico ou económico no autor.

As comparações são odiosas, mas as vezes também inevitáveis. Não era a primeira vez que pensávamos em Lois e no 2011 desde a decisão da Real Academia Galega. E agora que há uma proposta para celebrar também este 2015 de outra forma resulta impossível não pensar nas figuras que fazem medrar uma sociedade e como seguem a ser referentes por cima daquelas que apostaram por reprimí-la e empequenece-la. Mais uma vez miramos para o poeta do amor e a doença com esperança, como esse ponto de encontro da diversidade de uma cultura, como uma aposta aberta para o futuro, como uma tentativa de deter para sempre a roda da infâmia. Não há melhor nome para uma biblioteca.

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25/03/2015 by marioregueira

Um Dylan Thomas com gelo, por favor

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“Ele aqui bebia, mas bebia uma coisa normal. O que o matou foi o álcool americano”. Algo assim diziam os fregueses de Swansea-Abertawe quando lhes perguntavam pela morte do seu paisano Dylan Thomas. O poeta, famoso pela sua voz profunda e os seus recitais na BBC, quase tanto como pela sua intensa relação com o álcool, finara em Estados Unidos, no meio de uma turné. As causas da morte, ainda hoje questionadas, nunca poderão separar-se das suas últimas palavras: “18 whiskys, isto deve ser uma espécie de recorde”. Tratando-se de um poeta, pouco mais se precisa para criar uma lenda descomunal sobre os seus excessos

Dylan Thomas representa uma espécie de espinha cravada na consciência de Gales. A atitude do autor para o seu país de nascimento oscilou sempre entre o amor e o ódio, escorando muito habitualmente para uma aguçada ironia. “Terra dos meus pais, meus pais podem ficar com ela”, uma frase de uma das suas personagens que alude ao começo do hino galês e que, junto com a sua escolha exclusiva pela língua inglesa como ferramenta de criação o colocam num lugar difícil para a sociedade galesa. O poeta mais importante que saiu da terra dos bardos jamais escreveu uma linha na língua dos bardos. E não só isso, apesar de defender sempre a sua origem e a sua identidade galesa e encher com ela a sua obra, nunca permitiu que esta caísse na autocomplacência.

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O passado 2014 o país, e particularmente a cidade de Swansea-Abertawe celebrava o primeiro centenário de Dylan Thomas. Foi interessante ver como Gales resolvia a sua relação com o filho díscolo. A poeta em língua galesa Menna Elfyn dizia pouco antes do começo das celebrações: “expressou o que muitos de nós sentimos: às vezes adoramos odiar Gales”. Swansea-Abertawe, a “feia, bonita, cidade”, que dissera Dylan Thomas, encheu com a sua imagem as ruas, de forma que era muito difícil não tropeçar com ela. O moço alcoólico que a considerava um lar querido mas até verdadeiro ponto deprimente voltou ser o protagonista. Peneiraram os seus escritos até dar com qualquer referência à cidade para escrever nos muros dos museus. E não só a sua atitude irónica, senão também os seus excessos humanos foram aceites completamente.

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O Swansea Museum recreou numa das suas salas um velho pub da época da sua mocidade como elemento central da exposição que lhe dedicavam, e presenteava porta-vasos com a imagem do poeta como parte da entrada (ainda que não serviam álcool). Porém, se calhar, a melhor homenagem fez-lha a destilaria galesa Penderyn, dedicando-lhe um dos seus whiskys da colecção “Icons of Wales”. Poucos reconhecimentos maiores cabem a um poeta que se define a si próprio como bêbado que fazer parte da cultura etílica do seu país até o ponto de poder escutar como pedem os copos com o seu nome. Os fregueses insistem em que foi o álcool americano o que o matou. No fundo, e na Galiza bem o sabemos, sempre é o álcool que não é da casa o que nos mata. Se calhar por dar-nos o veneno junto com o antídoto é que temos que aprender a amar e odiar com as mesmas forças o nosso próprio lar.

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18/03/2015 by marioregueira

As férias da família Liddell

Llandudno (pronuncia-se algo semelhante a “Clandicno”) é um dos pontos turísticos mais relevantes do norte de Gales. A curva da sua praia concentra, mesmo no inverno mais cru, alvoroto de crianças e de banhistas temerários, dispostos a deixar-se iludir por um raio de sol. Os imensos complexos hoteleiros, alguns velhos, outros simplesmente em ruínas, olham para o mar com lembranças palpáveis de tempos melhores, e tanto o seu passeio marítimo como a sua doca estão cheios de atrações de feira e salões recreativos.

Há algo de irreal em Llandudno, se calhar porque o mais simples é chegar em comboio, por um caminho de ferro que por momentos parece atravessar as águas, ou se calhar porque o seu ambiente de turismo improvável, povoado de famílias e idosos reformados vagando entre atrações antigas, resulta incompreensível para quem chega de fora. No fundo, o que mais destaca da pequena cidade é uma estranha sensação de viva decadência. Algo que não só alude ao transcorrer dos anos, mas que parece fazer parte da sua natureza desde há muitos  tempo.

É provável que em meados do século XIX, quando o casal formado por Henry e Lorina Liddell decidiu comprar uma casa de campo para passar as suas férias de verão lá, Llandudno tivesse já algo desse ambiente. Muito provavelmente procedesse da sua recente transformação de vila galesa em destino de férias, algo que ainda hoje pode rastrejar-se bem no seu contorno. Henry e Lorina iam acompanhados dos seus muitos filhos e filhas, e muito pouco imaginaram que o lugar exato que escolheram para veranear seria lembrado mais de um século depois, e muito menos que uma das suas filhas pequenas acabaria tendo estátuas na cidade. Tampouco que se debateria durante muito tempo se, em algum desses luminosos verões da década dos sessenta receberam (ou não) a visita de um velho amigo de Oxford, o reverendo Dodgson.

Llandudno não foi outra coisa do que o pátio de verão de Alice Liddell, a menina para quem Lewis Carroll escreveria os dois livros de Alice (Alice no País das Maravilhas e Através do espelho). Desconhece-se se Carroll visitou os seus amigos em alguma ocasião, ainda que sim se encontram referências ao lugar nas suas cartas e parece ser que a morsa e o carpinteiro do segundo livro aludem a dois penhascos com esses nomes populares na costa da cidade. Se temos em conta que as duas personagens passeiam por uma praia, não é estranho pensar que algumas das areias da costa de Llandudno acabassem passando ao outro lado do espelho.

Penmorfa - Llandudno

Penmorfa, a casa dos Liddell

Fosse como fosse, Llandudno acolheu o seu protagonismo na criação de uma das obras referenciais da literatura universal de uma forma ambivalente. É certo que a cidade está cheia de estátuas com as personagens de Carroll, que propõem ao viajante a sua própria perseguição do coelho branco pela geografia. Do outro lado, porém, a velha casa dos Liddell foi demolida sem muito escrúpulo no 2008 para criar uma zona residencial, e no mesmo ano foi fechado o pequeno museu dedicado ao universo da Alice. A presença da personagem na cidade parece caminhar no estreito fio das relações literárias apócrifas, demasiado leve e demasiado aberta a debate, se calhar só apreciável para pessoas que sejam alícicas impenitentes. Do outro é provável que também exista o temor sensato de acabar construindo um grande complexo turístico que acabe por abalar o precário equilíbrio da zona

Em qualquer caso, não estou com nenhuma dúvida de que, mais alá das referências evidentes, existe uma relação inegável entre a cidade e os mundos irreais de Lewis Carroll. Pode ser que proceda de uma velha inspiração literária ou que seja produto de um contágio posterior padecido pela própria cidade, mas a estranheza que surpreende ao viajante pelas suas ruas e passeios é uma dessas experiências que vão além do simples turismo.

Alice

15/03/2015 by marioregueira

Novos mares

novos mares

Lutamos por ele desde os primeiros tempos do blogomilho, há quase uma década, quando ainda era o .gz o estandarte para a rede mais reivindicado. Tanto tempo depois era quase uma dívida pendente erguer esta bandeira para seguir navegando nos nossos próprios barcos, assim que, apesar da boa companhia que tivemos sempre na Blogaliza (desde há pouco também blogaliza.gal), chegou o momento de partir para novas terras.

A pessoa que me ajudou a armar este projecto dizia que era um momento interessante para as páginas de autor. Em quase uma década de crise económica sabemos bem o que subterfúgios como “momento interessante” querem dizer, assim que aceitamos que entramos num género em crise e que as nossas torpes habilidades e as limitações próprias do formato só contribuirão a agravá-lo. Ainda assim há umas quantas coisas novas, se calhar a mais interessante, a possibilidade de criar um caderno de bitácula multilíngüe, escrito originariamente em galego, mas com versões também para a norma portuguesa e o castelhano das que seguro sabereis dissimular as eventuais gralhas.

Mesmo com todas as inovações, não deixo de ter a sensação de que entro numa casa com mais quartos que os móveis que possuo para enchê-la, ou se calhar são os fôlegos para movê-los nesta nova mudança o que falha. Desculpem a desarrumação, as areias de Gorée são más de varrer, e hoje, data mágica de 2 de Março sou, como todos os anos, um pouco mais velho.

Começamos.

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