As férias da família Liddell
Llandudno (pronuncia-se algo semelhante a “Clandicno”) é um dos pontos turísticos mais relevantes do norte de Gales. A curva da sua praia concentra, mesmo no inverno mais cru, alvoroto de crianças e de banhistas temerários, dispostos a deixar-se iludir por um raio de sol. Os imensos complexos hoteleiros, alguns velhos, outros simplesmente em ruínas, olham para o mar com lembranças palpáveis de tempos melhores, e tanto o seu passeio marítimo como a sua doca estão cheios de atrações de feira e salões recreativos.
Há algo de irreal em Llandudno, se calhar porque o mais simples é chegar em comboio, por um caminho de ferro que por momentos parece atravessar as águas, ou se calhar porque o seu ambiente de turismo improvável, povoado de famílias e idosos reformados vagando entre atrações antigas, resulta incompreensível para quem chega de fora. No fundo, o que mais destaca da pequena cidade é uma estranha sensação de viva decadência. Algo que não só alude ao transcorrer dos anos, mas que parece fazer parte da sua natureza desde há muitos tempo.
É provável que em meados do século XIX, quando o casal formado por Henry e Lorina Liddell decidiu comprar uma casa de campo para passar as suas férias de verão lá, Llandudno tivesse já algo desse ambiente. Muito provavelmente procedesse da sua recente transformação de vila galesa em destino de férias, algo que ainda hoje pode rastrejar-se bem no seu contorno. Henry e Lorina iam acompanhados dos seus muitos filhos e filhas, e muito pouco imaginaram que o lugar exato que escolheram para veranear seria lembrado mais de um século depois, e muito menos que uma das suas filhas pequenas acabaria tendo estátuas na cidade. Tampouco que se debateria durante muito tempo se, em algum desses luminosos verões da década dos sessenta receberam (ou não) a visita de um velho amigo de Oxford, o reverendo Dodgson.
Llandudno não foi outra coisa do que o pátio de verão de Alice Liddell, a menina para quem Lewis Carroll escreveria os dois livros de Alice (Alice no País das Maravilhas e Através do espelho). Desconhece-se se Carroll visitou os seus amigos em alguma ocasião, ainda que sim se encontram referências ao lugar nas suas cartas e parece ser que a morsa e o carpinteiro do segundo livro aludem a dois penhascos com esses nomes populares na costa da cidade. Se temos em conta que as duas personagens passeiam por uma praia, não é estranho pensar que algumas das areias da costa de Llandudno acabassem passando ao outro lado do espelho.
Fosse como fosse, Llandudno acolheu o seu protagonismo na criação de uma das obras referenciais da literatura universal de uma forma ambivalente. É certo que a cidade está cheia de estátuas com as personagens de Carroll, que propõem ao viajante a sua própria perseguição do coelho branco pela geografia. Do outro lado, porém, a velha casa dos Liddell foi demolida sem muito escrúpulo no 2008 para criar uma zona residencial, e no mesmo ano foi fechado o pequeno museu dedicado ao universo da Alice. A presença da personagem na cidade parece caminhar no estreito fio das relações literárias apócrifas, demasiado leve e demasiado aberta a debate, se calhar só apreciável para pessoas que sejam alícicas impenitentes. Do outro é provável que também exista o temor sensato de acabar construindo um grande complexo turístico que acabe por abalar o precário equilíbrio da zona
Em qualquer caso, não estou com nenhuma dúvida de que, mais alá das referências evidentes, existe uma relação inegável entre a cidade e os mundos irreais de Lewis Carroll. Pode ser que proceda de uma velha inspiração literária ou que seja produto de um contágio posterior padecido pela própria cidade, mas a estranheza que surpreende ao viajante pelas suas ruas e passeios é uma dessas experiências que vão além do simples turismo.