11/07/2017 by marioregueira

Oposições, santuários e violência

Moças de Georgia lendo a Faulkner no caloroso verão de 1971, Philip Bouchard (CC BY-NC-ND 2.0)

Li Santuário com dezasseis ou dezassete anos e possivelmente por isso não o esquecerei nunca. Sem reler nem uma só vez, tenho vívida a memória do seu estilo, do ambiente rural opressivo e da violência que descreve. Elementos que descobriria anos depois na narrativa galega da pós-guerra, no nosso caso articuladas para sortear a censura política e filtrar uma mensagem que não podia fazer-se de forma mais evidente. Descrever um universo mesto, onde as pessoas se impõem umas a outras pela força, e que resvala para o bizarro e o marginal, produzindo uma sensação de funda estranheza nas pessoas leitoras, serve para fazer um reflexo da sociedade norte-americana dos anos do cracke. A estratégia também servia para representar, em linhas similares, a sociedade do franquismo, coincidente em muito com esse retrato. Nos dois casos havia um pouso de denúncia social indireta, com um matiz necessário no caso do Estado espanhol, onde não havia possibilidade alguma de formular uma denúncia patente.

Pergunto-me como é possível que, anos depois, uma parte da sociedade crítica da Galiza apoie os protestos pela escolha de um texto desta obra para as probas das oposições. São consciente de que Faulkner pode representar uma opção particularmente difícil, que trabalhar com um hipotético estudantado sobre violência e sexualidade também é um exercício complexo, e que seguramente há motivos suficientes para indignar-se num processo de oposições que representa em sim mesmo uma pequena tortura. E porém o que indicam a maior parte dos protestos não é nada disso, senão que o texto escolhido descreve um acto de violência sexual.

Não partilho a maior parte das críticas que se fizeram neste sentido, nem sequer as de pessoas com as que habitualmente estou de acordo. Assim, partilho com Susana a necessidade de mover os marcos, da mesma forma que penso que os novos marcos não os constrói a escolha de um tribunal de oposições e que mais responsabilidade têm este tipo de reações no seu futuro, que deixam uma imagem mais confusa que politizada, também nos caminhos que as futuras autoras têm que percorrer.
Rejeitar um texto porque descreve uma violação, falar de “deleite” num ato descrito como forma de representar e denunciar uma violência social na que as mulheres são as primeiras vítimas, supõe confundir narração com apologia, algo que não se aguardaria de pessoas responsáveis da formação de outras. E por suposto mais ainda considerá-lo parte do cânone da cultura da violação, do que faz parte tanto como poderiam fazê-lo as violações que descrevem Margaret Atwood ou Eduardo Blanco Amor, que provavelmente não mereceriam nem uma mínima parte destas reações.

Toda uma vida de escrita para que te ponham a mirar um aparcamento – Visit Mississippi CC BY-ND 2.0

O acontecido não deixa de lembrar-me certos fenómenos que acontecem no ensino universitário ou na literatura galega. O rebaixamento do nível educativo para oferecê-lo à vontade do consumidor, que passa por evitar ao estudantado qualquer tipo de frustração ou conflito deste tipo, por exemplo, uma tendência à alça no contexto europeu. Pensar que pode haver superviventes da violência sexual entre as pessoas examinadas é relevante, sem dúvida, mas também abre o caminho a evitar outro tipo de textos a vítimas de outro tipo de violências e experiências traumáticas. Também a pressupor que uma pessoa, pelo feito de ser supervivente da violência sexual, fica eivada à hora de analisar os discursos que se realizam sobre ela, mesmo quando estes funcionam na sua contra ou destacam o seu papel nas relações de poder, colocando-se fora das dinâmicas habituais do patriarcado. Se algo fazemos desde a filologia é estudar discursos e sabemos (ou devêramos saber) como se constroem e que elementos empregam. E sem dúvida, onde não há conflito, não há discurso. Não se pode falar contra a violência desde a literatura sem mencionar e descrever a violência. Podem-se, isso sim, fazer panfletos.
Isto faz-me pensar também uma linha preocupante dentro da literatura galega contemporânea. A necessidade de estabelecer discursos unívocos e maniqueus, onde as pessoas boas são bonísimas e ideologicamente perfeitas e as más, más de telenovela. E onde qualquer alusão à zona escura do ser humano vai acompanhada de um rol de defesa onde a voz autorial deixa perfeitamente claro que condena o que ali (em geral assepticamente) conta. Uma forma de empobrecer o discurso e de renunciar a outras estratégias que não sejam mastigar minuciosamente ao leitorado ideias justas. Tão justas que mereceriam formulações literárias menos pobres que aquelas com as que habitualmente são tratadas. Depois virão as surpresas e as dificuldades para identificar o inimigo. Como me disse uma amiga minha, opositora de galego, sobre este tema:

– O que me amola é que todo mundo proteste pelo de Faulkner e ninguém diga nada de que em galego nos puseram um poema de Noriega Varela. Isso sim que é violência.

02/05/2017 by marioregueira

Caetano, de novo na Galiza

Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas representavam uma viagem ao passado. A história do samba pode percorrer-se quase sem equipagem, só com voz e guitarra, assim, ainda que deitemos em falta a intro original de Preciso me encontrar, Cartola e os seus letristas apareciam ressuscitados numa actuação com poucos artifícios. Tão singela que poderiam transferí-la a um bar, ainda que não podemos enganar-nos, seguramente a maior parte do público não responderia calidamente a um espectáculo que percebiam como um simples aperitivo.
Assim, se Cartola era uma parte da história da música popular brasileira, Caetano representava o seu ponto culminante, a sua continuação natural. E suspeito que o concerto foi programado seguindo esse mesmo princípio. Uma colecção de grandes sucessos que se moviam com fluidez entre as raízes da bossa, a renovação que supôs o tropicalismo e algumas (muito poucas) referências à carreira imediata do cantor. A última vez que vim a Caetano ao vivo foi há quase uma década no mesmo Palácio da Ópera da Corunha, num concerto dentro da gira do . Caetano fizera um disco de rock com quase sessenta e cinco anos, e aparecia vestindo jeans, saltando pelo palco e acompanhado de uma banda formada por pessoas novas. Conseguira fazê-lo mais uma vez, ser capaz de encarnar simultaneamente história e músculo impulsor da música brasileira. O Caetano do passado domingo estava já mais perto do João Gilberto que de qualquer coisa que tivesse algo a ver com o rock. Sentado com o violão durante a maior parte da actuação, Caetano poderia ter gravado um grandes sucessos ao vivo, algo mais que suficiente para a maior parte do público da Galiza. Seguramente éramos só uns poucos os que ficamos com vontade de ter, ademais, outra coisa, ainda que fosse escutar Um comunista na véspera imediata do primeiro de Maio.

Os idosos do lugar lembram sempre dum dos primeiros concertos de Caetano na Galiza, a finais dos anos oitenta. Parece que se dirigiu ao público consciente de que estava a tocar na terra na que nascera a língua portuguesa, uma língua que seguimos a falar com particularidades próprias e à que demos o revolucionário nome de galego. A consciência linguística de Caetano não é habitual nos artistas brasileiros, que tratam de expressar-se muitas vezes num portunhol que deixa surpreendido (ou irritado) a uma parte do público. Para alguém que disse que uma das coisas mais maravilhosas do Brasil era que falasse a língua portuguesa, é evidente que a maravilha continua no facto desta ter-se originado em boa parte dum território que não faz parte de Portugal. Assim, uma parte do público aguardava que aparecessem de novo essas velhas cumplicidades. “Sempre que venho a Corunha falo português porque sei que vocês percebem. E gosto muito de que seja assim”. Desta vez não houve alusões ao sotaque lindo da gente quando cantou com ele, como em Vigo no 2003, mas foi suficiente para lembrar que Caetano segue a ser uma das poucas pessoas com consciência cultural dos lugares nos que canta. Com virtudes e defeitos, seguimos a olhar para ele como quem olha para as maravilhas e os milagres.

21/03/2017 by marioregueira

Pasolini e os autocarros

Pasolini ante a tumba de Gramsci. (Domínio Público)

Alguém editara umas listas de objectivos da extrema direita italiana dos anos setenta. Ou da operação Gládio, que vinha sendo o mesmo. Um dos meus amigos mo comentava num café de Barcelona. O que mais lhe dava nas vistas era que, entre os três primeiros nomes aparecia o de Pier Paolo Pasolini, como um objectivo prioritário, muito por cima de alguns líderes políticos comunistas. Que ameaça podia representar Pasolini? Um director de cine, um intelectual, um poeta que, como tantos poetas, provavelmente nem sabia manejar armas.
Os processos nos que se trama a repressão sempre são eloqüentes a a respeito das hierarquias do inimigo. Acho que Pasolini tinha muitos números para estar na cúspide dos ódios da parte mais conservadora da sociedade italiana. Uma pessoa capaz de representar o regime pró-nazista de Saló como uma comunidade sadomasoquista com deleitação para coprofagia. É dizer, que a burguesia italiana obrigara o povo a comer a merda de um pacto com a Alemanha de Hitler, e ademais obtinha um prazer inconfesável ao contemplá-los. Sem dúvida ninguém atacou os responsáveis pela participação na guerra com tanta sanha e com um retrato tão cru e directo. A própria vida do director, homossexual confesso, cristão e militante comunista, era uma permanente provocação e a sua morte turva e suspeitosa, também o foi. A mãos de um menor de idade que se prostituia habitualmente com ele, ou assassinado por uns assaltantes misteriosos ao grito de “porco comunista”, qualquer dos dois desfechos que se baralham acoplaria perfeitamente com a sua vida e com o seu projecto artístico.
A gente que queria a Pasolini morto não temia o seu papel na organização de uma revolta comunista. Temia a sua sexualidade e, sobretudo, o seu discurso sobre isso. A forma na que o autor os tirava da sua zona de conforto fazendo com que as suas crenças ancestrais trambecassem, e ainda se atrevia a reivindicar para isso uma espiritualiade cristã autêntica acusando-os de hipócritas. Seguro que mesmo assim, Pier Paolo se surpreenderia de saber que os seus inimigos lhe tinham tanto temor como para querer que morresse entre os primeiros.

Parte da campanha de Chrysallis

Uma surpresa semelhante deveram sentir na associação espanhola Chrysallis ao ver a enorme reacção que gerou entre a extrema direita uma das suas campanhas. Criada para apoiar as crianças transsexuais, a tese da associação foi tão singela como explicitar que pode haver meninas com penis e meninos com vulva. Uma frase tão simples como pedagógica, especialmente porque matiza aquela com a que à maioria das pessoas lhes explicaram as diferenças anatómicas em algum momento da infância. Mais além de voltar explicar a teoria de género, diferenciando a identidade social das características físicas e como não é obrigatória a correlação entre ambos campos, em Chrysallis foram à mensagem mais simples. E seguramente foi esta simplicidade uma das razões da campanha à contra que sofreram e ainda estam a sofrer. Chrysallis não teve a necessidade de uma obra provocadora para estar no ponto de mira de uma parte da sociedade do Estado espanhol, mas as razões são muito similares às que condenavam a Pasolini. Não há pior ataque ao conservantismo que impugnar a sua explicação do mundo, um mundo que pretendem natural e a apolítico e ao que estes remendos evidenciam como uma estrutura profundamente ideologizada até nos detalhes mais simples. Nem há só dois géneros nem, de havê-los, estes se corresponderiam inequivocamente com uma genitalidade física concreta, defendê-lo é uma postura ideológica. Uma postura ideológica conservadora, para ser mais precisos e que naufraga procurando legitimações fora do seu próprio corpus doutrinal (tal e como gente da ciência e da biologia lhes lembra periodicamente).
A resposta que os ultracatólicos e conservadores deram com a sua frota de autocarros, apelando a uma conspiração, deixa em evidência o verdadeiramente débil da sua postura. E ainda que considero que cada quem tem direito a defender as perspectivas que estime pertinentes (que para isso são ideologia), encontro algo verdadeiramente mesquinho nesta campanha em concreto. Não só por estar dirigida contra uma das minorias menos protegidas da sociedade ocidental e, indirectamente, contra as crianças que se encontram dentro dela, senão também pelo emprego demagógico e banal de conceitos como a liberdade de expressão. Mas sobretudo por ser um ataque contra algo que, mesmo dentro da tese mais ultra destes intolerantes, corresponderia principalmente à vida privada das pessoas e a liberdade de construir o seu aspecto e identidade como queiram. Mais uma vez, a direita católica explicando-lhe aos demais como têm que viver e como se têm que considerar, não seja que a eles lhes falhe o firme que pisam com os pés. Pasolini, que sabia bem como acabam estas aventuras, não duvidaria onde situá-los.

12/02/2017 by marioregueira

Aeroporto Rosalia de Castro

Em Liverpool não há um Auditório John Lennon, mas sim há um aeroporto. No Rio de Janeiro um dos dois, o antigo Galeão, está dedicado Antônio Carlos Jobim, que o mencionava em Samba do Avião e que, segundo parece, tinha ademais medo a voar (o outro está dedicado ao pioneiro da aviação Santos-Dumont, para compensar). Os critérios que empregam os países para estas coisas são sempre ambíguos. Tenho a sensação de que a maioria das vezes é uma mistura de atração turística e de honra menor e que em muitas ocasiões põem-se nomes a aeroportos que nunca levariam outras coisas mais importantes. Outras vezes a política é não tocar os topónimos originais para não fazê-la pior. Seguramente a minha opção favorita.

Adaptada de Above Us Only Sky de Martjin Van Es – CC BY-NC-SA 2.0

Não me oponho, contudo, a que Rosalia de Castro dê nome ao aeroporto de Compostela, simplesmente pergunto-me se foi um movimento inteligente. O principal argumento que escuto diz que Rosalia vai dar as boas-vindas a milhares de visitantes de todo mundo. Na minha última visita a Edimburgo, chegando à estação de comboio de Waverley fui consciente pela primeira vez que estava nomeada em honra a um romance (e ciclo narrativo) de Walter Scott. As citas do autor, que tem na cidade o maior monumento nunca dedicado a um escritor, davam as boas-vindas a quem viajava sem que ninguém tivesse a ideia genial de marcá-lo num epónimo. Em certo sentido, a relação entre Edimburgo e o seu filho Walter Scott é tão intensa que certas coisas estão a mais. Será que Compostela fracassou à hora de marcar a sua relação com a poeta romântica até o ponto de ter que estampar o seu nome na porta de entrada?

Edimburg from Scott Monument, Oliver-Bonjoch, CC BY-SA 3.0

Pessoalmente acho que há homenagens bem mais acertadas e que não precisariam da aprovação do Ministério espanhol de Fomento. Sem entrar nas múltiplas referências rosalianas que há na própria cidade, estou seguro que mesmo coisas como assegurar o emprego da língua galega por parte das companhias aéreas ou a disponibilidade de literatura na nossa língua na terminal estão bem mais no espírito de Rosalia que a simples adopção de um novo nome para Lavacolha. Também são bem mais difíceis e requerem de um trabalho constante, claro.
Uma segunda questão é em que medida a memória de Rosalia, sem nenhuma relação estreita com Lavacolha nem com a aviação, pode servir para ocultar outros elementos históricos.
Eu tinha uma proposta clara, sem nenhuma relação com Lavacolha: o único aviador galeguista que tivemos, Elixio Rodríguez, de quem o país galego precisaria uma pouca da sua sorte emprestada. Porém, fora da minha aposta pessoal, há outra ainda menos evidente que porém apela a uma relação íntima com o próprio aeroporto. Passaria por reivindicar o seu passado como campo de concentração franquista. Ainda que se fizeram homenagens, e há alguma placa, sempre longe da vista das passagens e do turismo, é preocupante que muita gente desconheça que o tal aeroporto foi construído com mão de obra escrava de prisioneiros da Guerra Civil Espanhola.

Insignia de piloto, República española, Pla – CC BY-SA 3.0

Suponho que um nome como Aeroporto Internacional Antifascistas de Lavacolha está fora do debate, reabre velhos ferimentos que uma autora, galega e espanhola como Rosalia está longe de poder tocar. Também ficaria mal à hora de comprar souvenirs em alguma das lojas, que seguro sairão ganhando ao representar a efígie da poeta. Ao fim de contas, mais que do seu legado ético e literário, este povo é herdeiro do vello costume de fazer de Rosalia uma feira.

23/01/2017 by marioregueira

Os melhores livros de 2016

Uma vez que a maior parte das listas mais ou menos colaborativas foram saindo à luz, quero deixar, igual que o janeiro passado, a minha impressão do ano literário em língua galega. Como já disse, e imagino que seguirei dizendo no futuro, isto é uma lista mínima e completamente pessoal, que é a única forma que tenho de fazê-la. Do que li (que foi muito, mas também não foi todo), eu ficaria com estes livros para resumir o 2016. Sobra dizer que há muitos outros excelentes, alguns, capazes de disputar-lhes o protagonismo a estes, simplesmente eu começaria por eles.

Cara ao leste, de Antía Nara (Xerais)

Para mim, uma das surpresas literárias do ano. O regresso à narrativa de Antía Nara, com um romance de tese, capaz de gerar o seu próprio suspense cenital apelando a um argumento tão de actualidade como liberado dos tópicos esencialistas com os que habitualmente é tratado. O genocídio silencioso que despoboa o nosso país de mocidade, o papel das identidades subalternas na realidade rural, a propriedade da terra ou o futuro de uma Europa post-soviética são temas que, por desgraça, não é habitual ver na literatura galega contemporânea. E muito menos tratados com esta mestria.

Suicidas, de Fran Cortegoso (Chan da Pólvora)

A pena mais grande do ano foi o passamento de um autor novo e prometedor, mas também ver como o relato do seu final ameaça com reinterpretar uma aposta poética que deveria ir bem mais além e ser lida à margem das lendas e os seus acasos. Suicidas não é um livro importante por ter saído dias antes de que o seu autor finasse, deverá ser um livro importante para nós por muitas outras coisas, entre elas uma aposta lírica com uma densidade não vista antes e uma perspectiva ante à criação poética tão abrangente que é impossível evitar o sentimento de vertigem.

Novas do Exterior, de Xosé Luís Santos Cabanas (Axóuxere)

A crónica de Santos Cabanas comove por dois motivos: o primeiro e mais evidente pela história que narra, que parte da detenção do seu filho, Antom Santos e contínua nos 63.000 quilómetros de viagens à prisão do subtítulo, a parte mais visível de um calvário judicial e penitenciário absolutamente kafkiano. Em segundo lugar, porque o pai do prisioneiro é capaz, mesmo assim, de oferecer um relato de qualidade, com uma certa distância que porém não deixa de denunciar os absurdos que rodearam o julgamento, o castigo acrescentado da dispersão e do regime penitenciário, ao tempo que testemunha a solidariedade que lhe foi saindo ao passo.

24/06/2016 by marioregueira

A Inglaterra prevalece

Alan Moore imaginou-o a finais dos 80. Um Reino Unido que sobrevive a uma guerra nuclear que acentua o seu isolamento. Um governo fascista e clerical que persegue qualquer forma de dissidência. Conflitos territoriais na Escócia e políticos com sobrenomes galeses entre os dirigentes. V de Vingança, a obra realizada junto a David Lloyd tratava de digerir os quase dez anos de Margaret Thatcher no poder, um dos governos que mais transformou a sociedade das ilhas. Em certo sentido, foi a resposta do mundo da banda desenhada a um trauma longamente contestado pelo punk britânico e outras manifestações culturais.

Os artistas empregam mentiras para contar a verdade. E se calhar a maior verdade que oculta a obra de Moore e Lloyd é que não se trata do reflexo concreto de um momento político, senão de um relato intemporal que pôde demonstrar a sua vigência muitos anos depois. Se calhar depois do resultado das votações que hoje publica a imprensa a distopia do homem com a máscara de Guy Fawkes recupere de novo o seu valor de retrato distorcido de uma sociedade

A União Européia foi, nas últimas décadas, uma das grandes armadilhas para as classes populares. A ela entregamos a nossa soberania popular sem receber nada em troca e desde ela se realizaram políticas tão detestáveis como a realizada com os refugiados sírios. O papel das comunidades nacionais no seu seio ficou praticamente desvanecido ante uma instituição que sempre afirmou estar feita para os estados e não para os povos. Nenhuma crítica sobra a uma macroestrutura política que haveria que derrubar ou transformar em algo completamente irreconhecível.

E porém, não há outra forma de ver o referendo de ontem e o seu resultado que como uma tragédia. Não votam pela saída do Reino Unido as organizações de esquerdas nem as comunidades nacionais, também não os sectores críticos com o que a União Européia representou no que diz respeito a solidariedade e justiça. Os vencedores são os esporeados por discursos racistas e autárquicos, os nostálgicos do império, os que fecharão as suas fronteiras e simplesmente disputarão à União Européia o seu papel na infâmia enquanto seguem mandando tropas a todas as guerras do outro lado do planeta. Os feudos tradicionais da esquerda, os velhos vales mineiros, as regiões de Gales que seguem acreditando na sua identidade nacional, os irlandeses do Ulster e toda a Escócia ao uníssono ficam, mais uma vez, predos num pesadelo que terão que desmontar pouco a pouco. E junto a eles, uma boa parte dos migrantes que estes anos fizeram parte da sua sociedade e que agora mesmo começam a pôr um pé em terra de ninguém. E por muito que a saída seja, possivelmente, amortecida pelo aparato burocrâtico do Estado, a sociedade britânica acaba de mandar uma escura mensagem a uma parte importante da sua cidadania. Tal e como diziam na obra de Moore e Lloyd, Inglaterra, a velha Inglaterra das distopias, prevalece.

05/06/2016 by marioregueira

O nome dos escravos

Ali-Terrell

Adaptada de Cliff – (CC BY 2.0)

“Como me chamo?” “Como me chamo, Tio Tom?”. A pergunta, dirigida entre golpes a Terrell marcou um antes e um depois. Cassius Clay renunciara ao seu nome de escravo para ser conhecido como Muhammad Ali e demonstrava de que modo rompem os escravos as suas últimas correntes. As minorias e as classes baixas não tardaram em identificar-se com a sua arrogância. Na periferia de São Paulo, onde a minha família seguiu esse e outros combates, ter um nome de escravo ainda significava algo e Ali não tardou em ser reconhecido como um digno herói das classes baixas. Alguém que vinha da nada, mas que tirara de algum lado uma arrogância que não convidava à antipatia, senão que mais bem representava todas as vitórias negadas de uma classe social. Ali era mais do que um boxeador, era um símbolo, uma identidade, uma espécie de superheroe que não tardaria em vencer ao mesmo Superman.

Numa época na que os combates estavam bem mais longe que um par de clicks, a memória de Ali transmitia numa espécie de representação teatral improvisada acompanhada de relatos orais. Sabia dele como de outras mitologias familiares. A inclinação ao boxe na minha família sempre foi relativa e profundamente vinculada a elementos sociais. À madrugada viam-se, as vezes clandestinamente, os poucos combates dos púgiles da Galiza. Pelo dia lembrava-se ao mais grande de todos os tempos. De não mudar o nome, de não ser arrogante e de não se enfrentar à maquinaria da guerra estadounidense, eu não saberia nunca que era Muhammad Ali, como nunca me falaram de Frazier ou de Foreman. Mas ninguém esquece a quem disse em voz alta que Vietnã era uma guerra na que os brancos mandavam pretos a lutar contra os comunistas. “Ninguém do Vietcong me chamou nunca preto. Nenhum deles me linchou, nem me mandou os cães, nem me roubou a minha identidade, nem violou a minha mãe e assassinou o meu pai. Não vou disparar contra essa gente por ser pobre. Prefiro ir à prisão”.

Malcolm X & Ali

Bob Gomel – (CC BY-SA 4.0)

Há tempo que não sigo a imprensa convencional, mas posso imaginar a caricatura de Ali que estão deixando. O campeão, o portento físico, o desportista. Fizeram-no com Mandela e era mais difícil. Podemos jogar a esquecer o papel de Ali nos movimentos sociais. Mas seguirá havendo muita gente que, mais que ao boxeador, admiramos o homem que deixou de boxear. Que sabendo que o desporto era a sua vida decidiu sacrificar a sua carreira e enfrentar a prisão e o descrédito por fazer simplesmente o correcto. De que vale ser campeão se não tens dignidade?

Mais ali dos aparecimentos pontuais na televisão, tardei anos em reconstruir toda essa memória imaterial. Reconhecia o seu sorriso, o seu voar como borboleta e picar como abelha, as fanfarronadas que vingavam as humilhações das multidões. Escutava o povo do Zaire gritando “Ali bumaie” enquanto as peças simbólicas completavam as paisagens intuidas. Não era casualidade que fosse Foreman, o bom escravo convertido ao cristianismo, o derrotado por um Ali imparável, acolhido pelos africanos como uma criança perdida e reencontrado. Dizem que as crianças de Kinshasa ainda sonham em ser coma ele, e que o seu fantasma segue a percorrer os bairros pobres das cidades. Se não tens medo dos teus sonhos é porque não são grandes suficiente.

O meu telemóvel soou a primeira hora da manhã de um sábado. Deitei-lhe mão entre sonhos e li incrédulo a notícia. Nos seus últimos aparecimentos, Ali estava avellentado e afectado pela doença. Isso pensámo-lo agora, porque o seu carisma sempre esteve intacto, e os seus punhos seguiam golpeando na nossa memória. Não duvidei de que tinha que ser um erro e segui dormindo. Sonhei com rings enormes, com gente da minha família recreando aquele k.o., com Laila Ali, com um combate numa África sufocante, com tios tom aprendendo o nosso nome a golpes e com canalhas mordendo a lona para sempre.

31/05/2016 by marioregueira

A ressaca de Maio

Sirkuselefanter

Adaptada de Sirkuselefanter (1962), Municipal Archives of Throndheim. –CC BY 2.0

O mês mais cru não é Abril, senão Maio, que é o mês das Letras Galegas. Quando acaba de passar Maio as cidades ficam igual que quando acaba de passar o desfile de um circo com elefantes e majorettes dessas que fazem malabarismos com o pau da bandeira. O chão está estrado de poemas de Manuel María e dos artigos e publicações que se lhe dedicaram e uma sensação de ressaca invade a cidade. Ao menos não foi como o ano passado no que uma fera perigosa escapou de mãos dos domadores e criou o pânico na cidade entre os mais, ainda que se deixasse acariciar por alguns. Porém, como todos os anos, e ainda que não possamos nos abstrair de todo do desfile que toma as ruas, perguntámos-nos se realmente vale a pena. De verdade é isto o que convém à cultura galega, à difusão da sua literatura, aos próprios homenageados? (usamos o masculino porque são 52 homens e só três mulheres). Não será hora de reservar as ruas da cidade para passeiar, incorporar varões entre as majorettes, mulheres entre os domadores e mandar os elefantes pastar?

O dia das Letras Galegas foi uma festividade criada contra o franquismo. Não durante a guerra, senão bem mais tarde, a começos dos anos sessenta, quando a gente de Galaxia começava a deixar atrás a fantasma da perseguição política e ia entrando em instituições como a Real Academia Galega. A conversão da Academia de elemento folclórico franquista numa ferramenta de difusão da cultura galega é algo que se lhes deve, ainda que não se pode negar que isso implicava um certo diálogo com o franquismo, um papel de mediação que Galaxia abraçou sem muitos traumas, chegando a se enfrontar com organizações que exerciam a oposição directa a este. As Letras Galegas nascem dessa mediação, criadas em 1963 e dedicadas a Rosalia de Castro, um ano depois permitiam celebrar a Castelao com a permissão do regime. Não ao Castelao político, claro, mas havia algo inegavelmente político em dedicar-lhe uma festividade ao maior representante do Partido Galeguista, ainda que fosse como humorista ou literato. Que o franquismo tolerasse esse tipo de homenagem facilitou também que Castelao pudesse ser reeditado, ainda que com um enorme controlo sobre o tipo de escritos que podiam ver a luz. Sem as Letras Galegas nada disso seria possível, ainda que também é certo que a atitude de submetimento às directrizes da ditadura não beneficiou muito ao galeguismo e sem dúvida facilitou a futura fagotização e manipulação de Castelao por parte da direita espanholista.

Lion.Medrano.Tamer, adaptada do usuário de Flickr felicito rustique, jr. –CC BY 2.0

Desde então o Dia das Letras tem-se celebrado sem interrupção e com poucas ou nenhuma modificação. As regras arbitrárias seguem em pé, o protagonismo da Academia não se modificou um ápice e a transição daqueles tempos duros a estes tempos duros não foi demasiado boa. Não só pelas questões referentes às escolhas da Academia ou ao desleixo a respeito de questões como o género, inherentes à própria instituição. Uma festa que nasce com um valor simbólico tão marcado e associado ao resistencialismo não volta ser a mesma fora dessas coordenadas. Ainda assim, a dependência dos ritmos culturais galegos de dezassete de Maio é excessiva. O chão da cidade está cheio de poemas de Manuel María, e é provável que nunca mais voltemos vê-lo assim. A quantidade de publicações e a difusão do autor esquecer-se-ão em seguida, e também não é que haja muita margem para fazer uma crítica objectiva da sua obra no meio de uma celebração como esta, onda cada vez ganham mais espaço as frivolidades publicitárias encarnadas em bolsas de supermercado. Por outra parte acho que o esforço editorial galego poderia estar melhor empregue que em tirar cinco biografias e três antologias do mesmo autor num prazo de meses. Um autor ao que será difícil voltar dedicar-lhe uma monografia nos próximos anos e que nunca desfrutará de um estudo como o do presente, pois nem sequer gigantes literários como a própria Rosalía de Castro podem repetir homenagem no Dia das Letras. Nunca haverá outro Castelao, mas é que a função de 17 de Maio já não devera ser a de erguer um totem simbólico que por um dia faça pensar que existimos mesmo baixo o abafo de uma ditadura.

É certo que não é a única instituição estranha que há na Europa. Quando penso que Gales e Escócia têm um cargo chamado poeta nacional que se dá em vida alivia-me pensar que nunca veremos essa tragédia na nossa cultura, onde a gente é capaz montar dramas por um posto na Academia ou por dizer tira-me daí essa feira do livro. Em qualquer caso, neste momento de Maio, enquanto as bolsas que homenageiam aos nossos autores começam a ser recicladas como bolsas do lixo, a ressaca de uma festa selvagem martela na cabeça e faz-nos desejar que algum dia os elefantes arrasem con tudo em desbandada e as majorettes se façam donas da cidade.

Seminoles

Seminoles, do usuário de Flickr Prayitno –CC BY 2.0

30/04/2016 by marioregueira

Sorte

Four Leaf Clover, original da usuária de Flickr Claire –CC BY-NC-ND 2.0

Não é uma palavra que empregue a miúdo, precisamente por isso me surpreendi a mim próprio repetindo-a case a diário durante a minha viagem pólo norte da Grã-Bretanha. E não de qualquer forma, senão como final de conversação, case como substitutiva das fórmulas de despedida. Não diga adeus nem até logo, diga singelamente sorte.

Algo que já sabia, mas que se fixo especialmente notável esses dias foi a quantidade de gente que temos fora. Em todos os destinos, procurada ou por azar, acabava falando com uma pessoa da Galiza. Um par de correios chegam para confirmar que aquele velho conhecido de Ferrol está trabalhando em Manchester, que outra procura emprego em Liverpool e que alguma mais trata de alargar estudos na Escócia. Umas pintas ajudam a criar uma breve mas intensa sensação de fogar. Pelo meio, as inevitáveis histórias, quase todas com um ponto de inflexão situado no final da década passada, a crise geral, mas especialmente a crise cultural da Galiza arrasando como uma riada invisível com vidas e projectos. Nunca cansaremos de repetir que não defendemos só a língua e a cultura galega por amor, senão porque era uma fonte de riqueza material que os governos da direita se encarregaram de destruir.

Xigantes Parados

Xigantes parados, original do usuário de Flickr termitero gnu –CC BY-NC-SA 2.0

Do outro lado os casuais. A maior parte das vezes em pubs e restaurantes, alguém do pessoal que te escuta falar e que te pergunta timidamente de onde és. Galician, contestas, aguardando a cara de confusão ou as perguntas que sempre seguem a essa afirmação. Mas o que encontras é um sorriso e uns olhos brilhantes. Eu também, de que parte és? Não me surpreende seguir encontrando ferrolãos e ferrolãs. Depois de todo, como comentava alguém, a gente que falta na nossa cidade teve que ir para algum lado, não pôde evaporarse sem mais. Galiza é uma das regiões européias com o desemprego mais alto e com uma população mais envelhecida, uma tendência que se afianzou durante os dois últimos governos de Feijoo mas que, como na época franquista, não tem em conta nos seus cálculos as pessoas que faltam. As pessoas que faltam explicam o envelhecimento prematuro e convertem os dados do desemprego num autêntico escândalo. Seguramente são uma parte do melhor do país. Gente disposta a ajudar-te, que te pergunta se também vais ficar na cidade, que sabe onde conseguir cerveja galega e que te presenteia cartões de telefone para que tu também possas chamar à casa. Pessoas que guardam um orgulho estranho e primário pelo país que deixam atrás, mergulhado nas sombras. Se sois da Galiza não vos compensa subir às Highlands, não são melhores do que as nossas paisagens.

Good Luck From London

Cartão-postal dos anos quarenta publicada por Rescued by Rover –CC BY-NC 2.0

Para alguns povos a migración foi um acidente histórico, uma fase na que povoar terras afastadas ou participar na construção de novos países. Para nós é um clássico, uma tendência que nunca passou de moda. O barco negreiro do que falava Otero Pedrayo segue a funcionar, ainda que os escravistas refinassem os seus métodos. Os galegos que se encontram numa taberna e que se tomam por estrangeiros até que dão em entoar uma cantiga seguem perdidos pelos pubs do norte. Todas as histórias do século passado seguem servindo hoje. Só há que adaptá-las um pouco.

Tenho, como todo o país, uma lembrança precisa das penúrias que as diferentes ramas da minha família encontraram nas suas migrações. A confusão de uma língua estranha, as humilhações que sofre todo trabalhador estrangeiro. A saudade da família e do que não é a família. Os começos difíceis e as quase imediatas incertezas pelo futuro. O retorno como um dever ou como uma tentação. Não sei como se despediriam os migrantes da nossa terra há cem anos. Ao melhor mencionavam santos católicos ou acrescentavam um épico Terra a Nossa no final da conversa. Eu desejo sorte. Gostaria de dizer que haverá regresso, que vamos tumbar estes ladrões e recuperar o país, que voltaremos encontrar-nos passeando pelas ruas de Ferrol ou Compostela. Que entraremos pelas portas da Galiza em hordas, como quem assalta um castelo. Mas só consigo erguer a mão e pensar na dureza da nova vida. E desejo sorte. Ainda que também me pergunto se não serão eles quem devem desejar-ma a mim e a todas as pessoas que vão ficar neste país esfarrapado.

14/04/2016 by marioregueira

Caminho de Frongoch

Frongoch

O norte de Gales é a dia de hoje um dos territórios mais periféricos e pior comunicados da ilha de Grã-Bretanha. Há cem anos devia sê-lo ainda mais, e sem dúvida por isso foi o lugar escolhido pelo governo britânico para situar um campo de prisioneiros que servisse para hospedar os inimigos capturados na I Guerra Mundial. O campo de Frongoch começou a receber prisioneiros alemães, mas em algum momento o Reino Unido decidiu evacuá-los a outra localização. Mais ou menos nesta altura do ano 1916 começaram a chegar prisioneiros irlandeses a Gales. A Revolta de Páscoa, ferozmente reprimida, trazia um numeroso contingente de novos prisioneiros de guerra, uma guerra inesperada, mas à que o Reino Unido reagiu como ante qualquer outra, com artilharia nas ruas de Dublin e execuções nos dias seguintes. Por Frongoch, pouco tempo depois, passaram centos de prisioneiros irlandeses, entre eles Michael Collins, uma das pessoas que, só cinco anos depois assinaria os tratados que reconheciam o Estado Livre da Irlanda. A estadia em Frongoch não foi longa e também não esteve falta de elementos positivos. A concentração serviu aos irlandeses para reorganizar-se e formar-se mutuamente. Anos depois refeririam ao campo como a Universidade da Revolução.

Bandeiras

Há umas semanas caminhamos até o lugar onde estava situado o campo para render homenagem aos lutadores da Irlanda. Os galeses guardam algo mais que uma memória internacionalista do feito histórico. Na sua versão dos feitos, os irlandeses não só aprenderam tácticas de luta em Frongoch, senão que também entraram em contacto com uma realidade que os impressionaría enormemente. Se o norte de Gales é, ainda hoje, uma das praças-fortes da língua galesa, em 1916 esta devia ser a principal, se não a única língua empregada pela população, especialmente numa zona afastada e rural como a dos arredores do campo. Os irlandeses deveram mirar admirados aquele povo que, sem fazer nenhum acto de rebelião activa, exercia porém uma resistência invisível em cada palavra que pronunciava. Palavras pronunciadas, ademais, num idioma aparentado com o próprio gaélico irlandês, uma língua com muito pouco valor social e que ocupava um lugar claramente secundário no movimento independentista da ilha. Parece ser que este contacto com uma realidade semelhante mas bem mais viçosa impactou profundamente aos líderes revolucionários, e há quem diz que foi a partir desta que começaram a reformular o papel da língua na luta de libertação. Há mesmo quem relaciona isto com a imediata cooficialidade do gaélico irlandês na Irlanda independente. A aprendizagem da língua galesa e o conhecimento doutro povo consciente da sua identidade formaram também parte da equipagem que os prisioneiros levaram do campo.

Frongoch-2016

No acto de Frongoch, que antecede outro mais grande que se fará em Junho, celebravam-se também estas pequenas resistências, estas comunicações entre diferentes modos de lutar e sobreviver. As bandeiras históricas irlandesas e galesas ondeavam juntas, e entre as pessoas assistentes, sem bandeiras, três pessoas da Galiza das que ao menos uma pensava nos cem anos que separavam também o seu país da criação das Irmandades da Fala. O começo de uma reivindicação linguística que acabou evoluindo à luta política e que manteve uma obsessão palpável com Irlanda, o desejo de um paralelismo que não vivia só na suposta conexão céltica da tradição, senão também na vontade de caminhar os mesmos passos. Em 1921, enquanto Irlanda preparava as negociações da sua convulsa liberdade, um dos membros das Irmandades, Ramón Cabanillas, chamava à ilha “irmanciña adourada” (irmãzinha adorada) nas páginas da nossa Terra. Se calhar a mais célebre, mas também a enésima evocação da Irlanda no principal meio das Irmandades, que sempre tomou o país como um referente privilegiado. As Irmandades foram assim a antessala do galeguismo político, as suas primeiras práticas, o início dum processo que culminaria com a fundação do Partido Galeguista. Os campos de prisioneiros que conhecemos os galegos tardaram, porém, vinte anos desde a chegada dos irlandeses a Frongoch. Neles não houve escola revolucionária, nem galeses nos arredores dando-nos apoio moral e confirmando-nos o sentido da nossa luta ou do valor político da língua. Também não antecederam nenhum éxito imediato, senão a longa noite do franquismo. E porém, também aprendemos neles, se calhar mesmo de forma mais perdurável, o valor da resistência e da dignidade.

Número da Revista Nós dedicado a Terence MacSwiney (1921)

Número da Revista Nós dedicado a Terence MacSwiney (1921)

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