A Inglaterra prevalece
Alan Moore imaginou-o a finais dos 80. Um Reino Unido que sobrevive a uma guerra nuclear que acentua o seu isolamento. Um governo fascista e clerical que persegue qualquer forma de dissidência. Conflitos territoriais na Escócia e políticos com sobrenomes galeses entre os dirigentes. V de Vingança, a obra realizada junto a David Lloyd tratava de digerir os quase dez anos de Margaret Thatcher no poder, um dos governos que mais transformou a sociedade das ilhas. Em certo sentido, foi a resposta do mundo da banda desenhada a um trauma longamente contestado pelo punk britânico e outras manifestações culturais.
Os artistas empregam mentiras para contar a verdade. E se calhar a maior verdade que oculta a obra de Moore e Lloyd é que não se trata do reflexo concreto de um momento político, senão de um relato intemporal que pôde demonstrar a sua vigência muitos anos depois. Se calhar depois do resultado das votações que hoje publica a imprensa a distopia do homem com a máscara de Guy Fawkes recupere de novo o seu valor de retrato distorcido de uma sociedade
A União Européia foi, nas últimas décadas, uma das grandes armadilhas para as classes populares. A ela entregamos a nossa soberania popular sem receber nada em troca e desde ela se realizaram políticas tão detestáveis como a realizada com os refugiados sírios. O papel das comunidades nacionais no seu seio ficou praticamente desvanecido ante uma instituição que sempre afirmou estar feita para os estados e não para os povos. Nenhuma crítica sobra a uma macroestrutura política que haveria que derrubar ou transformar em algo completamente irreconhecível.
E porém, não há outra forma de ver o referendo de ontem e o seu resultado que como uma tragédia. Não votam pela saída do Reino Unido as organizações de esquerdas nem as comunidades nacionais, também não os sectores críticos com o que a União Européia representou no que diz respeito a solidariedade e justiça. Os vencedores são os esporeados por discursos racistas e autárquicos, os nostálgicos do império, os que fecharão as suas fronteiras e simplesmente disputarão à União Européia o seu papel na infâmia enquanto seguem mandando tropas a todas as guerras do outro lado do planeta. Os feudos tradicionais da esquerda, os velhos vales mineiros, as regiões de Gales que seguem acreditando na sua identidade nacional, os irlandeses do Ulster e toda a Escócia ao uníssono ficam, mais uma vez, predos num pesadelo que terão que desmontar pouco a pouco. E junto a eles, uma boa parte dos migrantes que estes anos fizeram parte da sua sociedade e que agora mesmo começam a pôr um pé em terra de ninguém. E por muito que a saída seja, possivelmente, amortecida pelo aparato burocrâtico do Estado, a sociedade britânica acaba de mandar uma escura mensagem a uma parte importante da sua cidadania. Tal e como diziam na obra de Moore e Lloyd, Inglaterra, a velha Inglaterra das distopias, prevalece.