A tumba de Leiras
Participei o ano passado na primeira edição de “Mondoñedo é poesia”, uma aposta por encher de versos as ruas da velha capital de província, esse nordeste fértil que tantas e tantas vozes tem dado à literatura galega e tantas outras tem acolhido entre as suas pedras. Pensávamo-lo trás passear pelo cemitério velho: se a máxima de Castelao fosse verdadeira, e em vez de mortos fossem sementes as que metêssemos na terra, Mondonhedo seria um jardim. Não é singelo em nenhuma cidade da Galiza ver tantos e tantos nomes nas lápides históricas. Porém, o mais emocionante sem dúvida foi durante a parte do recital que transcorreu ao pé da tumba de Leiras (bem enfeitada com as rosas vermelhas que ele pediu sobre ela).
Alguém da organização me explicava por que a tumba de Leiras está onde está, no que parece a porta principal do cemitério velho, um pouco antes das escadas que dão acesso ao recinto em si, num apartado que depois. se reservou para as crianças. “Isto originalmente era extramuros do cemitério original, Leiras foi enterrado fora do sagrado”. Era evidente, Leiras Pulpeiro, maçom e furibundo anticlerical não obteve o direito a entrar no recinto controlado pela igreja católica
“Contam que o dia do seu enterro, um grupo de lavradores saltou o muro de cemitério e deitou terra com as pás para fora. Assim, mesmo desterrado, Leiras poderia jazer em terra consagrada”. A imagem era tão poética que não pude evitar representá-la mentalmente, um grupo de jovens desafiando o frio daquele Inverno de 1912, e desafiando também algo mais, a mesma estrutura religiosa que abafara ao vate de Mondonhedo e que conservava o seu poder praticamente intacto naquela altura do século XX. Muito deveu significar para o povo uma figura como a de Leiras Pulpeiro, tanto que, numa última homenagem decidiram arriscar-se a dar-lhe ao defunto algo que o próprio defunto, sem dúvida, não apreciaria tanto coma eles: a terra sagrada que não se lhe deve negar a ninguém. Quem disse que o povo não reconhece os seus poetas?
Na minha formação sempre me representaram a Leiras como um paisagista, uma denominação que ainda conservo como um tique. A escola paisagista mindoniense, iniciada por Leiras Pulpeiro e Noriega Varela. Tardei alguns anos em saber que Leiras e Noriega eram figuras politicamente opostas, e mais ainda em saber que Leiras Pulpeiro fora um autêntico rebelde durante o Mondonhedo do século XIX, médico dos pobres, capaz de fazer fronte ao poder eclesiástico, mas também de participar na criação de um dos primeiros projetos de “Estado galego” e de ser um dos poucos (se não o único) em contestar os versos eternamente censurados de Rosalia de Castro com estes outros:
E así son sempre pra España/ os patrucios desta terra/ esquencida, que española/ nunca chamarse debera.
E assim são sempre para Espanha/ os patriarcas desta terra/ esquecida, que espanhola/ nunca chamar-se devera.
Seguramente nunca chegaria a apreciar deste modo a figura de Leiras se não fosse pelas colegas de “Mondoñedo é poesia” e por aquela jornada, rica em histórias e em momentos significativos, rodeados sempre das paisagens amadas por Leiras Pulpeiro, Noriega Varela, Álvaro Cunqueiro e tantas outras figuras de primeira fila que decidiram nascer na velha Mondonhedo. E ainda que este ano não possa acompanhá-los, estou seguro de que o programa do próximo 1 de Maio (durante as Festas das Quendas) voltará encher as ruas da antiga capital com o melhor da nossa cultura. Porque, ao invés do que disse Castelao, nunca enterramos sementes junto com os mortos queridos, mas há jardineiros audazes que podem fazer brotar um novo jardim com as suas simples palavras. Mesmo reproduzindo num caloroso dia de Maio a poética valentia de um grupo de lavradores no Inverno de 1912.