17/11/2024 by marioregueira

Ártico

De todos os comentários marcados preliminarmente como spam que chegavam naquela época ao blog, aquele era diferente. Era pela temática, já que por alguma razão não oferecia encontros na sua cidade, cremes milagrosos para a virilha nem medicamentos contra a disfunção erétil. O comentário, acompanhado pelo seu respectivo link, era um elogio enormemente prolixo e grandiloquente ao conteúdo do post, embora sem mencionar nada em particular. Falo de memória, mas a recriação da minha lembrança resulta em algo deste tipo: “O mais brilhante que já li nesta vida sobre uma questão tão elusiva e ao mesmo tempo tão controversa. Dá uma olhada nisso que escrevi sobre o tema”. O link, é claro, não levava a nenhum lugar que abrigasse debates filosóficos, mas sim a tudo aquilo que o comentário não mencionava: os encontros, os cremes, as disfunções eréteis.

Quão desesperados estão esses geradores de spam que vêm colher em blogs supostamente “sérios”? Fazem isso, além disso, com o anzol do afago e da admiração intelectual, algo que parece uma bobagem mas que, para mim, indica uma sensibilidade particular. Igual àquela vez em 2000 em que meio mundo caiu em um e-mail com um assunto tão simples quanto intrigante “ILoveYou”, a mensagem jogava com um meio caminho entre o elogio e a curiosidade, entre o universal e o intimamente pessoal.

Poderia pensar em algum momento que nada disso teria alcance e que pouquíssimas pessoas seriam capazes de cair em uma armadilha tão óbvia. Foi muito antes de poder experimentar a parte mais pesada do spam acadêmico. Nestes últimos anos vinculado precariamente intermitentemente ao ensino universitário, recebi quatro ou cinco propostas para dirigir revistas ou seções de jornais acadêmicos. Se não estivesse avisado, me maravilharia que o meu trabalho fosse conhecido em cidades do continente ou do sudeste asiático e até poderia chegar a pensar que era uma oportunidade, não só para mim, mas para a própria cultura galega ter um porta-voz desde Xangai ou Jacarta.

As práticas das revistas predatórias são algo conhecido, fazem negócio cobrando de autores e autoras pela publicação dos seus artigos, ignorando, na maioria das vezes, os processos de revisão por pares e a boa prática acadêmica que rege as publicações vinculadas à pesquisa. Embora haja uma grande vontade de dificultar seu processo, as próprias publicações acadêmicas não predatórias têm problemas para se reivindicar diante desses negócios obscuros. Por exemplo, as ofertas de Xangai e Jacarta não mencionavam os meus honorários pelo trabalho de gestão e edição, mas é certo que as revistas acolhidas por universidades “honestas” nas quais colaborei, também nunca o fizeram e é até provável que fossem os seus diretórios que colocaram o meu e-mail na trilha desses golpistas. Reivindicar o trabalho acadêmico honesto é muito difícil quando as suas próprias instituições jogaram tantas vezes com a exploração (bem-intencionada) da boa vontade do alunado e mesmo do professorado disposto a colaborar.

Há alguns dias recebia o e-mail que unificava essas duas experiências. O Arctic Journal da Universidade de Calgary entrou em contato comigo para me pedir, após observar a minha produção acadêmica na rede, um artigo para sua revista. Eu, que tenho publicado sobre a literatura galega do pós-guerra, literatura queer e, ultimamente, sobre ficção científica, não pude deixar de pular de alegria. Me pergunto o que viram em mim, especialmente vendo seus interesses na cultura inuit e nas cavernas do Yukon, mas já tenho uma ideia para o artigo que lhes vou enviar. Adianto a conclusão: na pesquisa acadêmica faz muito, mas muito frio.

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