05/01/2016 by marioregueira

Desejo

desire

Recortada da original do usuário de Flickr Farther Along – CC BY 2.0

Não saberia dizer quando foi. Provávelmente a finais dos noventa. Bob Dylan não significava nada para mim. Um tipo com um par de canções tão icónicas como vazias. A pessoa da que os Guns N’ Roses fizeram uma versão na minha primeira adolescência. Um velho que tocara havia pouco diante do papa dos católicos, esvaindo o escasso halo rebelde que podia conservar. Nos tempos nos que o a blogosfera galega fervia e abundavam os dylanianos cheguei a criar uma pequena polémica dizendo que o Zimmerman não fizera grande coisa depois dos setenta. Os fanáticos seguirão protestando, mas se os oitenta de Dylan são para esquecer, os noventa não foram muito melhores. Boa prova foi que nesse momento, entre concertos apagados e discos medíocres, pude deixá-lo passar sem mais. Algo disso discutira com o meu pai naqueles dias. O conflito geracional, e eu sorrindo ceticamente cada vez que dizia que era um dos grandes, que havia bem mais do que a imagem distorcida que ofereciam dele os média. Segundo meu pai havia um disco que não escutara e que poderia resumi-lo tudo. Um disco que não tínhamos e que nunca tivéramos, mas que ele lembrava da sua mocidade. Não sei com quem falou. Naquela época de discos digitais e na que começava a aparecer um formato estranho chamado mp3, meu pai moveu céu com terra, visitou antigos camaradas e falou com velhos conhecidos do trabalho. Um dia de festa na velha casa dos meus avôs pediu-me que saísse com ele. Estacionara o carro com as portas abertas ao pé do velho espigueiro escorado. Alguém lhe deixara uma cassette e um dos poucos sítios que tínhamos para escutá-la era na velha rádio daquele velho carro. Era uma fita original, mais velha que eu e rotulada (nunca o esquecerei) em inglês e espanhol. Desire – Deseo. Com canções com títulos como Huracán, Una taza más de café ou Bahía del Diamante Negro. Na capa, um Dylan estranhamente novo sorria disfarçado de cowboy.

Tenho lido alguma vez crónicas de dylanismo apaixonado que incidem na mesma ideia. Não voltas ser a mesma pessoa depois de escutar pela primeira vez Hurricane, oito minutos e meio nos que parece que uma guerra se desata e te leva por diante. Meu pai contava-me a história que o meu inglês não dava para perceber. Furacão Carter, o racismo nos Estados Unidos, um crime que não cometera, a épica dum boxeador entre grades. A vergonha de viver numa terra onde a justiça é um jogo. E Dylan iniciando um movimento que conseguia reabrir o caso e pô-lo em liberdade. Num momento no que eu já me formulava abandonar direito pela literatura e as tensões na minha casa começavam, meu pai dava un tiro no pé com um conselho que nunca se atreveria a dar-me explicitamente. As vezes não chegam os advogados para reparar uma injustiça. Às vezes faz falta uma canção.

"Dylan and The Band" by Hugh Shirley Candyside - Flickr: Dylan and The Band. Licensed under CC BY-SA 2.0 via Wikimedia Commons

“Dylan and The Band” by Hugh Shirley Candyside – Flickr. CC BY-SA 2.0 via Wikimedia Commons.

Naquele serão no que o sol ia caindo pouco a pouco sobre o horizonte de Valdovinho, escutamos o disco inteiro. Rimos com o espanhol macarrónico de Romance in Durango, abrimos os olhos ante uma canção que se intitulava Mozambique, e estremecemos-nos com Oh Sister ou One More Cup of Coffee. Mais uma taça de café para eu continuar vale abaixo. A canção final, Sara, voltava soar como um fenómeno natural, algo mais calmo que o furacão do início. Além do icónica e política que resultava Hurricane, o tom geral do disco falava sobretudo da paixão. Como dizem as velhas crónicas dylanianas, quando a fita acabou, eu era outra pessoa. E porém, todo aquilo era só uma parte de um puzzle que completaria nos anos seguintes.

Muita gente sustém que Desire não é mais que uma segunda parte de Blood on the Tracks, um disco anterior que eu ainda tardaria um tempo em descobrir. Poderia declarar que ambos supõem a cúspide do talento de Dylan, numa época especialmente produtiva que nunca jamais se repetiu. Ambos contam a história de uma rutura e de um regresso, mensagens muitas vezes contagiadas de declarações políticas. Vivi com elas numa rua da zona velha. À noite havia música nos cafés e a revolução estava no ar. Nunca tive nenhum desses discos em formatos que quisesse conservar. Anos depois, meu pai presenteava-me uma gravação ao vivo da mesma época gloriosa, com as mesmas canções. Ninguém o sabia, nem eu no começo, mas achegava-me a um momento vital de rutura e reencontro, e durante meses as canções de Dylan acoplavam como feitas de propósito para a minha própria vida e pude aprendê-las de vez entre despedidas e regressos, traduzindo-as com pronomes impossíveis. Morremos e renascemos, misteriosamente a salvo, e trás voltar à vida encontramos as mesmas pessoas no quinto dia de Maio. Ainda que nós sejamos outros.

Não saberia dizer quanto de mim continua a cantar essas letras nem quanto delas ficaram para sempre entre as minhas. (Se o vês, diz-lhe olá, agora deve estar em Tânger. Estará pensando que o esqueci. Não lhe digas que não é certo). Furacão Carter morreu o ano passado, Dylan nunca voltou brilhar com esse lampejo cegante, muito menos depois de tocar para o papa dos católicos ou fazer retirar todas as suas canções do youtube, o carro de portas abertas contemporâneo. E nunca voltou falar de revolução. Não podes falar dessas coisas depois de empenhar a tua alma. E porém, apesar disso, como a chama do amor que palpita e esmorece antes de regressar, erguemos as nossas taças quarenta anos depois da cimeira dylaniana e revemos todas e cada uma das marcas que o desejo deixou nos nossos corpos. De todas as coisas que fizemos sempre haverá uma da que não nos arrependeremos. E as que não fixemos foi apenas por uma simples torção do destino.

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